"Caso Bosman" - Ciclismo


"Caso Bosman" da dopagem começa a ser julgado hoje
Kashechkin quer derrubar actual sistema antidoping
O próximo desenvolvimento do affaire "Kashechkin" está agendado para hoje, dia em que o ciclista cazaque, que se propõe revolucionar a arquitectura da luta contra o doping, enfrenta a União Ciclista Internacional (UCI) num braço de ferro que promete agitar as águas referentes a procedimentos dos controlos antidopagem.

O embate apresenta-se duro e juridicamente complexo. Começa pelo controlo antidoping positivo de Andrei Kashechkin (transfusão sanguínea homóloga), detectado numa investida da UCI na Turquia, quando ele passava férias com a sua família, e contestado em tribunal pelo gabinete de Luc Misson, o advogado belga que marcou posição no direito desportivo com o célebre "Caso Bosman".

A argumentação do corredor cazaque passa, essencialmente, pela violação dos artigos 6 e 8 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. "Ele foi controlado às 10h45. Foi uma situação anormal. Mas, se recussase o controlo, tinha sido dado como "positivo" comentou Cristian Botteman, auxiliar de Misson, em Agosto. "Isto não é uma batalha contra o doping, porque todos estamos contra o doping. É uma luta contra um sistema que não respeita os direitos fundamentais dos indivíduos", acrescentou.

Agora, a batalha ganha outra dimensão, com a entrada em cena da Associação de Equipas ProTour e a Associação de Equipas de Ciclismo Profissional, colocadas do outro lado da barricada, ao lado da UCI. "Se Kashechkin ganha com base no princípio de que apenas autoridades públicas podem tratar casos de doping, então podemos fechar a 'loja'", afirmou Jean-Louis Dupont , advogado da IPCP.

"A nossa argumentação baseia-se em três pólos", contrapõe Botteman. "O primeiro diz respeito à restrição da UCI em determinar apenas cinco laboratórios para detecção de transfusões homólogas (o motivo do já referido "positivo" de Kaschencki) e neles obrigar a contra-análise. O segundo elemento prende-se com a obtenção da prova de uma eventual dopagem. É normal que, no caso de tráfico de estupefacientes, seja necessário um mandado para entrar no domicílio de um suspeito, ao passo que para realizar um controlo sanguíneo de um corredor em férias na Turquia não é preciso qualquer documento? Um controlo urinário ou sanguíneo é um atentado à vida privada. Uma federação privada como a UCI não tem esse direito e esse é o nosso terceiro argumento, que coloca em causa o poder das sanções das federações nacionais." Num caso que promete dar que falar, os advogados de Kashechkin deverão ainda acautelar que o corredor permaneça em actividade até o caso se decidir.

"Caso Bosman" abriu um novo capítulo

A livre transferência de jogadores no mercado futebolístico, tal como a hoje conhecemos, teve o seu ponto de partida no "caso Bosman", o embróglio juridíco resolvido em 1995 que, de uma assentada, possibilitou a livre contratação de futebolistas em final de contrato e abolição do número "limite" de estrangeiros por equipa em vigor, na altura, nalgumas competições nacionais. Jean-Luc Bosman (na foto) jogava na Bélgica em 1990. No final desse ano, o seu contrato expirava e surgiu o convite do Dunquerque. O clube francês, no entanto, não ofereceu ao RFC Liège uma verba pela transferência, pelo que o acordo com o futebolista não se concretizou. Bosman, que não jogava na equipa principal, viu o seu ordenado ser reduzido e recorreu nessa altura para o Tribunal Europeu. Quando pela UE se advogava o comércio livre, o jogador viu-se impedido de exercer a sua profissão noutro país. A batalha legal arrastou-se até 1995. O acordão "Bosman" fez jurisprudência e, desde então, alterou para sempre o entendimento do mercado das transferências futebolísticas.

Direito à vida privada nos Direitos do Homem

Vejamos, no essencial, o que diz o documento que fundamenta a defesa de Kashechkin:

"O direito à vida privada garantido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem não é respeitado desde que se obriga um atleta a submeter-se a recolha de amostras, à assinatura de documentos sob ameaça, a divulgar informações concernantes à sua vida privada, a aceitar a violação do seu domicílio, a submeter-se a juridisções privadas que não oferecem qualquer garantia de independência".

Luc Misson um guru do desporto

Ficou famoso graças ao acórdão "Bosman", mas Luc Misson é uma personagem omnipresente em direito desportivo. Aos 50 e poucos anos o perfil do advogado belga retrata uma personagem implacável, que dificilmente abdica de uma causa - em especial causas relacionadas com os Direitos do Homem - mas também uma personalidade criativa, que na procura de soluções, não se importa de chatear a FIFA: Misson é fundador da NF Board, Associação dos Povos que requerem o seu acesso às competições internacionais de futebol, uma espécie de organização paralela não alinhada para pequenos países que organizou, em 2006, o Viva World Cup.

No futebol, depois de Bosman, Misson veio à berlinda em Fevereiro último, com o "caso Mitu". O romeno Marius Mitu e mais dois colegas foram suspensos pela federação belga num caso de jogos "combinados" e corrupção, mas o recurso ao tribunal comum deliberou que a paragem forçada era contrária ao direito ao trabalho. A justiça civil impôs-se à desportiva e o mesmo argumento pode agora ser aplicado no caso "Kashechkin".

Fonte: O Jogo

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